segunda-feira, julho 31, 2023

segunda-feira, julho 16, 2018

Tributo a Jamesson Buarque


Desejo ressaltar, inicialmente, que, se há algum entrelaçamento de amizade para a escolha da obra de Jamesson Buarque para esta abordagem de sua obra, a afinidade inicial advém da própria magia de sua poesia. Antes da lavratura deste texto, encontrei-me umas três vezes com Jamesson Buarque em condições insuficientes para troca de alianças de compromissos pessoais ou de louvação de personalidade. Portanto, se há alguma afeição, como eu disse no tributo ao poeta José Godoy Garcia, é pela própria sedução da poesia.
Desde o contato inicial com a poesia de seu livro Meditações, com ela digladio com encantamento. A amizade com o autor certamente está sendo construída, pois somos amigos daqueles que derrubam barreiras para melhor nos integrarmos à realidade. Ao contrário da ação de algumas lideranças mundiais, a poesia e as atividades de Jamesson são uma trilha real para circularmos desimpedidos pelos territórios.
Logo depois de comparecer ao lançamento de Meditações, em Goiânia, registrei nas redes sociais que o livro traz vitalidade, vivacidade à poesia brasileira, e que a poesia, nas mãos de Jamesson Buarque, deixa de ser algo banal, ocupação de tempo, para ser exercício responsável, pleno de energia. De uma metafísica que só Fernando Pessoa, Rilke e Jamesson Buarque conseguem praticar.
                Depois fiquei relendo o livro por aproximadamente dois anos em busca de delinear o formato de construção de abordagem mais aprofundada, pois o registro inicial não suportava o meu deslumbramento com os poemas nele agrupados. À semelhança do que faço com Fernando Pessoa, Hölderlin, Jorge de Lima, passei a ler partes do livro no transporte público; de pé nas paradas de ônibus; nos intervalos de repouso no trabalho; circulando pela casa, movendo-me na rede, no repouso do vaso sanitário. Aí notei que o livro estava incorporado entre as obras dos grandes autores de minha constante leitura. Daqueles que podemos nos socorrer sempre que desejamos nos emocionar ou ressuscitar o formato de construção do poema. Daqueles que não só resistem à persistência crítica, mas que tem forte presença sedutora à qual não resistimos e voltamos sempre a ela com o mesmo entusiasmo, pois temos prazer em ser esmigalhados entre as unhas do sedutor, já diz a psicanálise – se bem me lembro das declarações de Maria Rita Kehl numa conferência que assisti na UnB. E a poesia de Jamesson Buarque nos torce entre as unhas de cada verso.

Ao assistir ao documentário Eight Days a Week  sobre The Beatles, fiquei imaginando algumas frases que pudessem ser acrescidas à crítica que viesse a produzir. Não tive como anotá-las ali no escuro do cinema, e assim, como muitas outras em outros momentos, foram perdidas. Imaginei-me lendo o livro como Sigourney Weaver, que, em seu depoimento no filme, disse que usou latas vazias de cerveja, na juventude, para alisar os cabelos e comparecer ao show dos The Beatles como se eles fossem notá-la toda arrumada durante o espetáculo, entre 56 mil pessoas. No entanto, não tenho mais o visual dos anos 1970 para me comportar como a atriz e nem terei oportunidade de fazer a leitura entre número tão desejável de leitores, se a edição de 700 exemplares de Meditações sequer foi toda comercializada, e, na literatura, são raros os pop stars (e os pop stars da literatura nem sempre são leitura recomendável). E, ainda, a leitura não exige a presença do autor, portanto, pode ser feita com os cabelos desalinhados ou até mesmo em estado de nudez absoluta. Se o ato amoroso é desenvolvido com exigências formais, não é prática de amor, mas crítica ao amor. Se há aprofundamento excessivo na leitura, há crítica e, possivelmente, inutilização do fluir emocional. Diante de Meditações, experimentei diversas posturas, e o livro suportou todas elas, inclusive a postura formal.

Quase não se questiona quais as condições ideais em que se deve ler poesia, se em clausura, em sonolência, dopado ou excitado. Num mundo de predomínio da estatística, se fosse possível, a emoção seria tabulada. As condições de leitura são tão diversas quanto diversas são as estruturas da psique de cada um (a psique de quem levou chuva nos barrancos do rio Calvo não é a mesma daquele que meditou às margens do rio Tejo).

Na estruturação, Meditações parte da leveza lírica do movimento introdutório para ganhar profundidade clássica crescente nas divisões que complementam o livro. E é bom que Jamesson Buarque tenha preferido organizar a obra assim, como ele mesmo explica em longa nota introdutória (sem uso da primeira pessoa, apesar de assiná-la). O auge ocorre no poema “Eros contra Afrodite”, onde o autor se aproxima da experiência mítica da história, encaixa-se no real, libera energias pessoais, resultando num texto complexo, sem tornar-se inodoro em instante algum. Como na poesia medieval - repetições, antíteses, fonética premeditada, rimas internas, inversões repetitivas de versos.

A sessão “Meditação dos dias” – que falsamente se apresenta como um corpo unitário – compõe-se de poemas isolados, cada um podendo ser compreendido em seu corpus próprio. Todas as seções desse poema, que me emociona sobremaneira, certamente pela aproximação dos eventos políticos contemporâneos ao momento de minha leitura, apesar de os poemas terem sido compostos durante uma realidade social não tão diversa, pois a crise do país ganha fôlego quanto mais se mantém longeva. Sobreleva, ainda, o andamento onírico-etílico dos versos. Vejamos este que surge no segundo texto do poema: “Eu drama num gole enorme de nada”. Talvez nesse poema resida um dos versos mais fortes de Jamesson Buarque (“um morcego morto num ventre de urubu”), em sobrevoo à altura de Augusto dos Anjos (“Um urubu pousou na minha sorte”). E quantos urubus pousam em nossa sorte e quantos morcegos agarrados ao ventre de tantos outros urubus!

Pela exposição do andamento do cotidiano, é de deduzir que toda a série de poemas da parte intitulada “Meditações do dia” traz elementos autobiográficos fragmentados nos versos, desde a experiência de leitura do autor à clausura no ambiente doméstico. Outros questionamentos ficam em suspenso: o que pesa mais no poema para ebulir a emoção? A construção formal? O confronto da realidade exposta pelo poeta com a realidade que se impõe ao leitor? A poesia só se confirma se “te agranda las tetas/te achica las tetas/te hace la puñeta/te levanta el culo/te deja sin culo” como confirmam os versos de Alberti em homenagem a Picasso. E a poesia de Jamesson Buarque aumenta o púbis e as tetas do leitor.

Poderíamos aprofundar a busca destes elementos autobiográficos presentes não só nesse poema; no entanto, fica o trabalho de campo como tarefa para algum futuro candidato a doutor em poesia. E esse futuro doutor em poesia, possivelmente, só irá comprovar que a remissão desse poema à obra O trabalho e os dias, de Hesíodo, se dá apenas no formato do encadeamento dos versos, pois a temática é bem antagônica. Hesíodo detém-se, pela própria época de composição de sua obra, no trabalho rural, enquanto que, em Jamesson Buarque, expande-se a bruxa drummondiana na estranheza da cidade. Também não chega a ser enganosa a aproximação do título às meditações de John Donne, pois a expressão metafísica sobressai nos dois autores.

Compreendo que, em Jamesson Buarque, há uma tensa ebulição da tradição poética, da evocação de eventos cotidianos, uma naturalidade na composição dos versos e exatidão em formatá-los, pondo em relevo o óbvio dos registros da realidade, que encrava no leitor o prazer de participar do canto cosmogônico do Universo, do caos político, da hilaridade de rir-se da própria dúvida existencial, sempre amarrado ao corolário da perfeição. A perfeição só existe se há quem dela participe e a compreenda. Muitos poetas brasileiros não são perfeitos para muitos em razão de a maioria não estar preparada para compreendê-los. Quando o país ler melhor seus poetas os resultados da política serão menos frustrantes, menos morcegos mortos no ventre de urubus. Ou vice-versa, a ocorrência de uma vertente de poetas que produz para a poesia ser encaixada numa proposta crítica, com enorme perda da espontânea fruição. 

Em 29 de maio, vai fazer dois anos que esquadrinho a régua e compasso o livro Meditações na tentativa de enquadrá-lo nas correntes da poesia brasileira. Apresentava-se, inicialmente, o neobarroco ou poesia de invenção, sobretudo em razão da introdução de Cláudio Daniel. Mas esta corrente se me apresentou insuficiente para a classificação da poesia de Jamesson Buarque. Só as referências míticas não justificam o neobarroquismo do livro, pois falta nele elementos surrealistas que permeiam a poesia de invenção, e, ainda, algum traço de obscurantismo ou de esvaziamento lírico da composição. Também não é suficiente enquadrar a poesia de Jamesson Buarque na poesia hermética ou na obscurantista ou nalguma vertente das vanguardas, pois das vanguardas, acredito, ela se liberou com fortes pés de elefantes, pisoteando-as com a estrofação organizada, e, nela, o discurso emerge para evidenciar o desconforto do fluxo da realidade.

Assim que cheguei a casa, após assistir ao filme sobre The Beatles, li um único poema do livro (“Da distância”). Concluí que também classificar Jamesson Buarque de modernista tardio, ou de evocar algum elemento dos desdobramentos do Modernismo, blá-blá-blá, seria injusto com a sua poesia. O Modernismo está completando cem anos e ainda estamos preocupados com seus desdobramentos nas obras dos poetas contemporâneos, classificando insuficientemente nossos poetas na terceira ou quarta geração do movimento. Falta manifestos, exposição, quebradeira por poetas mascarados para redirecionamento da classificação dos poetas contemporâneos? A produção poética de Jamesson Buarque, acredito, sobressai pela experiência do autor, corajosa, de valorosa lírica, sem temor de infiltrar-se pelo mitológico e pelo cotidiano. Com precisão, Jamesson reconstrói os mitos com as grades da realidade vivenciada. Basta saber que é uma poesia que se confronta com a experiência do trágico, do clássico e o mitológico.

No poema “Da distância”, há um pronome traiçoeiro no verso de abertura (tê-la nos olhos). No desdobramento da leitura, não ficamos confiantes na identificação do sujeito a que se refere o pronome. Será a “paisagem” ou a “morte” ou a “palavra”? Portanto, Jamesson sai à frente dos demais líricos atuais, pois não fixa a expressão num bilhete de óbvia comunicação amorosa. A lírica atua para criar a inserção do elemento humano na realidade, tornando a palavra permeável à invenção. A sonoridade se desdobra internamente (“distância”, “lembrança”, “fantasma”, “forma”, “aroma”, “inerme”). Em nenhum momento surge a palavra epiderme - pode até movimentar-se algum “corpo”, “ossos”, mas sem a presença de um outro específico dentro do poema. Dois versos são centrais:

 

“Entre os lábios, a palavra insistência decapitada

e a desistência vindo acenar de pertinho.”

 

Nessa sentença, o primeiro verso, de quinze sílabas, portanto, fora do padrão da versificação da língua brasi/portuguesa – próxima da versificação homérica –, traz certa obscuridade, pois a metáfora funciona na cristalização de si mesma. Apesar de “desistência” não ser um elemento vivo, com membros e decisão própria, é algo vivo que “acena” no segundo verso, que contém elementos orais, pois, pelo manual de versificação da língua portuguesa, também não é de boa praxe o uso do diminutivo. Elementos esses que provam que a poesia quer se libertar da sisudez da composição e arrastar-se com os pés das possibilidades de desarticulação das palavras. As palavras passam a articular outros significados. Depois, numa reunião em minha casa, pedi ao Antonio Miranda para ler o poema “Da distância” – leitura que postamos nas redes sociais. Consultei o Miranda sobre os efeitos da construção dos dois versos com a presença de elementos da oralidade, e ele abonou a minha visão do justo uso do diminutivo. A descontração libera o impacto do prazer do texto, ainda que ele imprima novos significados à expressividade das palavras.

Destaque, ainda, para a seção “Canção de Mallarmé”, que dialoga com o percurso da história clássica com elementos prosaicos do cotidiano, comprovando que está correto afirmar que “A história sempre acaba em livro”. Há um longo poema que vem encartado na sobrecapa dobrável que enriquece o exemplar, em homenagem à professora Goiandira Ortiz de Camargo. O poema dialoga com o signo e com as formas de alteridade:

 

 

Depois de hoje, saiba você que

brota da idade em meia aurora

outra página, outro signário

 

Nunca é tarde para outra via

nem para outra

 

Esta página surge agora e da matéria dos dias

da carne dinâmica dos dias

Às vezes me indago porque não deixamos o poeta existir sem tanta classificação. Talvez a futura crítica vá chegar a possibilidades totalmente multifacetárias de enquadramento da poesia que ora se produz nas diversas localidades brasileiras. Não vejo possibilidade de classificação de poetas tão díspares como os contemporâneos Jamesson Buarque, Luci Collin, José Inácio Vieira de Melo e Antonio Moura dentro de uma mesma corrente. Cada um atua com os elementos da própria formação, cultura local, leituras diferenciadas, com produções definidas em encruzilhadas individualizadas. 

Foi por casualidade o meu primeiro contato com a poesia de Jamesson Buarque. Ao coletar material para uma antologia da poesia de Goiás, visitei os sebos de Goiânia e comprei o seu livro Novíssimo testamento, de 2004. Busquei informações sobre sua atividade no universo virtual, deparando-me com um fomentador da poesia na Universidade Federal de Goiás, em promoções de oficinas literárias e nas redes sociais (mas nas redes sociais ele tem sido mais comedido nos últimos tempos). Quase me frustrei ao constatar que ele nasceu em Recife (PE). No entanto, ele já é merecedor de cidadania goiana por contribuir com a poesia da localidade desde 2009. Orbita em torno dele uma juventude em êxtase com a poesia. Merece saudação essa atividade, que inflama a juventude com um método de compreender a poesia, com novas propostas de liberação psíquica para produzi-la. Destaca-se ainda que essa atividade tenha contribuído para que ele também melhor organizasse o próprio método de composição, alcançando patamares raros de liberação lírico-onírica. Percurso idêntico foi meu encontro com o trabalho de Patrícia Ferreira, autora das ilustrações do livro e que é homenageada no poema “Patchwork”. No final desse poema, há um pequeno intertexto com a obra de Eliot, bem como outros intertextos em outros locais do livro. No poema “Da distância”, aparecem dois versos integrais de Manuel Bandeira. Por mencionar Eliot, relembro da récita do poema “Os homens ocos”, por Marlon Brando, no filme Apocalipse Now – momento fomentador da poesia que passa despercebido para o expectador iletrado de poesia universal.

 

Os filmes de Andrei Tarkovski nos afirmam que a poesia é um elo que entrelaça o homem no percurso do tempo dos vários territórios. O nosso território só será o mesmo amanhã através da poesia, mostrando que só perdura a angústia prazerosa da fruição de existir. Crescem outras canas, erguem-se outras casas, esfarelam-se outras sementes para outra serenidade à paisagem, a corrupção mal gasta outras moedas, mas o sentimento que vai perdurar é aquele registrado pela poesia. Quando há o cansaço de participar e agir, a poesia ainda contribui para preencher esse caos de desânimo e inoperância (ou ignorância). Quando a comunicação se apresenta deteriorada, a poesia se ergue de dentro da deterioração, organizada no quebradiço das palavras e dos gestos. A poesia nos reúne e nos emociona, seja em que corrente venha a ser escrita.

Para vermos esse entrelaçamento aterritorial e atemporal entre os homens, através da poesia, desejamos mostrar um verso de Jamesson Buarque em confronto com outro de Herberto Helder, do livro Os selos, de 1989, publicado no Brasil em 2000 pela editora Iluminuras:

 

“Pode ser o inventário do sono pode no casulo desdobrado quando a seda”

 

Acredito que Jamesson Buarque – astuto pesquisador da poesia universal para usufruto pessoal e orientação daqueles que orbitam em volta de seu talento – pode ter conhecido o poema de Herberto Helder antes da composição do livro Meditações, de 2015. Portanto, há mais de duas décadas da publicação do livro do poeta português, que só agora em 2017 circula no Brasil em edição completa, Jamesson também compôs versos longos, dentro do parâmetro da poesia exigida pelo seu tempo, de delírio e desconstrução frasal, de entonação nova, em confronto com a desordem do real, num novo estatuto frasal, numa entonação que exige novas pausas, num fumo que nos desloca do cansaço das mesmas esfoliações da seda se do Homem se do macaco se do rinoceronte:

 

”Mas rinocerontes não deliram macacos tomando leite morno”

 

Jamesson Buarque escreve com a sensação do tempo presente mitologizando-o com as inscrições do passado; organiza o onírico, materializando-o na expressão e na correta manifestação da poesia do pós-fuzilamento e das pós-vanguardas.  Meditações, com sua dose de arsênio e ópio próprio, é uma oficina literária para aquele que desejar conhecer a forma correta da manifestação poética em tempos de extrema deterioração da linguagem e debilitação da ética e do Humanismo. É uma poesia que retoma em nós a coragem de emocionar, já que é a rigidez estúpida que move a contemporânea exaustão de existir.

Introdução a questões históricas da poesia em Goiás


O Projeto de Extensão "I Colóquio de Poesia Goiana", vinculado aos Projetos de Pesquisa "Configuração do lirismo na poesia goiana contemporânea" e "Apresentação da poesia goiana: de 1948 aos dias atuais”, que aconteceu nos dias 12 e 13 de junho de 2017 na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, certamente contribuirá para maior validação crítica da poesia goiana.
Digo, inicialmente, que, ainda que eu falasse de mim, eu ainda estaria falando da poesia goiana, pois, apesar de eu ter construído a maior parte de minha vida em Brasília, sempre procurei manter convívio com a poesia goiana, com ela dialogando, ainda que com o íntimo e amoroso conflito que é peculiar aos seus escritores, sem me distanciar da cultura que me moldou na infância e na adolescência.
Há uns vinte anos  ao comparecer a um sebo de uma cidade satélite de Brasília , ouvi do livreiro que “Goiás não tem escritores, mas vomitadores de palavras”. A declaração não só transmitia uma visão dolorosa e deturpada da literatura de uma fronteira nova como afetou profundamente a minha postura crítica com todos os direitos civis de minha cidadania goiana e deles mantendo memória orgulhosa. Foi como se eu tivesse ficado marcado como uma rês pelas duas letras que meu pai, em seu analfabetismo, se orgulhava de manter dependuradas na parede. O corpo de um “J” servindo para acavalar a primeira perna de um “M” na peça de ferro que servia para marcar as suas poucas cabeças de gado com as iniciais de João Miguel, seu nome.
Assumi que teria de modificar meu formato de relacionamento crítico com a produção literária de Goiás, que teria de atuar para atenuar e reverter essa visão, mesmo sabendo que só o trabalho de minha geração não será suficiente para limpar esse embotamento que se construiu desde os tempos dos governos provinciais, que trabalhavam para que as fronteiras novas não evoluíssem. O meu trabalho não seria só produzindo poesia, mas estudando as questões que contribuem para que se tenha no exterior uma visão embaçada da literatura goiana.
                Além de criação de um blog para abrigar matérias sobre autores goianos, auxiliar o poeta Antônio Miranda na manutenção da página dos poetas de Goiás em seu site e de incluir na Wikipedia o perfil de grande parte dos poetas goianos, procurei identificar questões que não são devidamente levadas em consideração no momento de avaliação da literatura goiana, e aí, sobretudo a poesia, que é a vertente a que estou debruçado.
                Pode-se confirmar, ao estudar a história da região, que Goiás é uma fronteira econômica nova, pois antes do Século XX a região era só um veio factível à exploração. O ensino só foi introduzido em Goiás, sistematicamente, no Século XX (o censo de 1920 registra que 98% da população não estava alfabetizada; a escola Régia no Estado de Goiás é de 1787 e estava instalada só na cidade de Meia Ponte (Pirenópolis) e, em 1788. em Santa Luzia (Luziânia). Em 1827, além da escola régia da capital, já existiam quatro em outros arraiais.  A criação de escolas para meninas veio somente em 1831. A inauguração do Liceu de Goiás, em 23 de fevereiro de 1847, representa a institucionalização do ensino secundário em Goiás, que funcionou até 1937, quando foi transferido para Goiânia. Em 1882 para suprir falta de professores, foi criada num anexo do Liceu, a escola para formação de professores, mas que foi extinto dois anos depois por falta de alunos, a baixa remuneração dos professores não estimulava a formação para a área. Não sigo em frente com este histórico, pois foge muito do escopo do estudo da poesia, só ressaltando que o ensino superior só seria introduzido no Estado com a inauguração de Goiânia e que a descentralização do ensino superior só ocorreria às vésperas Século XXI. É bom concluir este tópico com um aforismo banal, mas certeiro: Não existe produção e consumo de literatura sem educação.
                Para reversão desse quadro, é bom destacar que a urbanização funciona como fator imprescindível para a modernidade da poesia A urbanização só se introduziu em Goiás com a construção de Goiânia (1942) e Brasília (1960). Max Bense avalia que, no Brasil, com o enfrentamento bruto da natureza, não sobrava energia ao colonizador para usar com a cultura, e, aí, com a formação pessoal e dos filhos.
Quase todo compêndio sobre o desenvolvi­mento do Brasil Central não economiza enumerações das causas do retardamento da maturidade cultural da região, sempre peculiares ao período de formação de qualquer povo com as mesmas características: o atra­so econômico, a desorganização social, a distância dos grandes centros urbanos, a ausência de vantajoso in­tercâmbio cultural com as metrópoles de avançada es­trutura de meios de veiculação da crítica e da formação cultural, a carência de investimentos públicos no setor e o tardio surgimento de centros de ensino.
E para que essas questões sejam compreendidas e enfrentadas, reconheço que questões estruturais exigem enfrentamento em várias frentes (governo, imprensa, rede de ensino, a família e os próprios escritores): investimento no ensino para formação cultural, com inserção do espírito de liberdade e de criação, e não só de produção de economia; convívio com as expressões culturais, com a internalização da cultura dentro dos lares, com disciplina individual para acolhida da cultura e comportamento que justifique no indivíduo a ação organizada para exercício da cidadania. Não é à toa que a casa goiana é pródiga em dependências destinadas à alimentação, tais como cômodo específico para tulha, despensa e cozinha, e fa­lha em reservar ambiente da moradia para a reflexão; imperioso que a imprensa e segmentos da própria cultura atuem de forma a incentivar a acolhida da produção plural (Kundera fez esse questionamento para a cultura de seu país); melhor investimento bem econômico/bem cultural. O enriquecimento econômico em si mesmo não libera a ética de um povo, Muito pelo contrário, o enriquecimento gera pobreza e corrupção. O bem cultural gera o equilíbrio da sociedade. Comprova esta assertiva a presença dos filhos dos magnatas da soja instalados em seus carros, nas praças das pequenas cidades goianas, atochados de alcoolismo e ainda sem nenhuma prática de cidadania ao perturbar a população com violento som automotivo.
Postas estas preliminares, apresento um resumo bem livre da poesia goiana de meu tempo, que foi se construindo com o esforço intuitivo de cada poeta. Mas, na apresentação de seu livro A República, Platão nos anima dizendo que só a intuição constrói a estética. Assim, só depois de 1942, com o advento da urbanização, começaram a florescer em Goiás gerações de poetas com ideário mais delineado: o segundo modernismo de engajamento com a vida e a natureza, o GEN e o grupo Os XV, além das razões de surgimento de grupos que praticaram uma poesia de resistência e de um simbolismo gótico. E, com o advento do Século XXI, com o fortalecimentos dos curso de Letras no estado, a poesia alcançou fortemente as redes sociais e uma prática emparelhada com as correntes vigentes no País, principalmente com a poesia de invenção.
Quanto à divisão dos períodos históricos da poesia goiana, serão mencionados aqui algumas ca­racterísticas mais recentes, pois Gilberto Mendonça Teles, em A poesia em Goiás, de 1964, pela Universida­de Federal de Goiás, e Assis Brasil, em A poesia goiana no século XX, de 1997, pela Imago Editora, apontam as principais correntes e divisões históricas até o perío­do de publicação de seus estudos. Colheita (A voz dos inéditos), de 1979, pela Inigraf, e Goiás, meio século de poesia, 1997, pela Kelps, ambos de Gabriel Nascente, contribuem menos, pois, com a ambição de preencher lacuna — no período não circulava nenhuma antologia da poesia goiana —, são menos ambiciosas na seleta dos autores e na caracterização do desenvolvimento da poesia goiana. O autor, na apresentação de uma delas, confessa que “poetas maiores, menores ou não, aqui se juntam (…)”. Nesta antologia o organizador prefe­re acreditar que todos se enfeixam numa organicidade capaz de apresentar com crédito, maturidade e inventi­vidade para estabelecer maior permanência da poesia de Goiás dentro da nacionalidade. E — como Gabriel Nascente em Goiás, meio século de poesia — acredita que o melhor corte da maturidade da poesia goiana se dá a partir da década 1940, pois a construção de Goiânia, em 1942, aproximou do meio rural a urbanidade de frutífe­ra miscigenação cultural.
Em Goiás, só em dois momentos, os poetas se organizaram com ideário próprio em torno de pro­postas poéticas. O primeiro momento se deu em 1956, quando foi criado o grupo Os XV, de alinhamento com Geração de 45. No entanto, muitos de seus integrantes — mesmo Jesus Barros Boquady e Gilberto Mendonça Telles, que eram líderes do movimento — acabariam retornando, em algum momento, à versão da poesia mais livre. A fidelidade à estética estabelecida pelo gru­po seria mantida de forma mais permanente apenas por Afonso Félix de Sousa. O segundo momento ocor­reu a partir de 1963. Do contraditório Grupo de Escri­tores Novos (GEN), que teve atuação mais formalizada até 1967, pode-se dizer que teve a função de conscien­tizar o poeta goiano para a forma de atuar aparelha­da das descobertas estilísticas em vigor no seu tem­po, ampliando o espectro de experiências de produção poética. Valeram-se dos jornais para divulgar trabalhos e fazer laboratório crítico. O grupo avançou até as van­guardas da época, tais como a Poesia Praxis, que ainda conta com Heleno Godoy e Luis Araújo Pereira em viva produtividade. Do grupo, ainda são expoentes Yêda Schmaltz, que tem produção diversificada, fazendo na região as primeiras interligações da poesia e da pin­tura com a linguagem da informática; e Miguel Jorge, que contribuiu de forma vivaz com o grupo e com as demais vertentes ao dirigir suplemento literário no jornal O Popular, contribuindo de forma a ampliar a visibilidade da literatura goiana no mercado editorial e na aceitação crítica fora de Goiás. Os remanescentes dos grupos Os XV e GEN continuaram dentro de suas dogmáticas, menos filia­dos à exposição da região, cada um se ajustando à lin­guagem que lhe convém, sempre margeando a reflexão política.
É importante ressaltar que alguns caminhos da poesia goiana, a partir do GEN, não vêm merecen­do melhor caracterização pelos historiadores, críticos e meio acadêmico. Sempre que se vai produzir novo estudo a orientação da pesquisa para a avaliação dos poetas e da sucessão dos períodos históricos esbarra nos limites estabelecidos pelo livro A poesia em Goiás. No entanto, publicado em 1964, os efeitos da mudança da capital do País e as consequências da ditadura, bem como o desenvolvimento das obras dos autores que co­meçavam a produzir naquele momento não puderam ser avaliados por Gilberto Mendonça Teles. Assim, os novos estudos esquecem que a ditadura acertou de cheio Goiânia, que, em razão da proximidade com a capital Federal, serviu para centro de prisões políticas, inclusive com cessão de dependências de instituições públicas para tortura e assassinato de presos políticos. Hoje, essas dependências são destinadas à produção e à exposição cultural. Por essa proximidade, tanto física, quanto de ação dentro da história, a ditadura acertou de cheio a literatura goiana, com sequelas visíveis até os dias atuais.
A partir daí duas vertentes foram se conso­lidando dentro da poesia goiana, sem que tenham nascido com a preocupação direta de resistência ao regime de exceção. A primeira vertente está preocupa­da com o “abismo”, a “noite”, o “escuro”, o “exílio” e o “silêncio”, que denotam o conhecimento da vigilância da opressão que ronda o espaço físico do poeta e, ain­da, demonstra a clandestinidade que o cidadão devia guardar silenciosamente; e, a outra vertente, que atua quase em paralelo, prefere esposar reação de estra­nhamento, sem denotar resistência direta ao período de “escuridão” política, mas de desconforto às “trevas” da própria existência. Estas duas correntes passaram a rejeitar — até os tempos atuais — os poetas do GEN. Essa rejeição, até agora, não foi analisada para apurar se o antagonismo se dá pela divergência que cada uma adotou diante da estranheza política da época ou pela condução diversa do formato da linguagem poética de cada corrente.
Não foi de engajamento direto contra a dita­dura ou outra segmentação política a produção do pri­meiro grupo. Vindo em descendência direta do moder­nismo de José Décio Filho e José Godoy Garcia, o grupo — que não teve organização formal ou formulação de ideário como tinha ocorrido com Os XV e o GEN — im­pregnaram suas obras de fluorescência humana, sem­pre com toque de desencantamento. É grupo que tem de ser lido com a acesa lembrança das contradições po­líticas do período, e sem a esperança de encontrar nele qualquer lirismo redentor. No segundo livro de Brasigó­is Felício, a voz do poeta conclama:

Não perdoa, Pai,
que eles sabem o que fazem
e como sabem fazer!

Ainda em 1987, Gabriel Nascente remete para o futuro as consequências desse tempo perdido, gera­ção que foi deslocada de suas possibilidades, proibida de ter conhecimento e consciência:

O tempo é um comboio invisível
que nos arrasta para o entardecer da vida.
A força da consciência se dilui — é o tempo.
O ontem tão cheio dos porquês: e agora, pesado,
cada vez mais certo nas ondas do futuro.

Aidenor Aires, em 1973, em versos cálidos, também se mostra poeta dos tempos sombrios que re­caem sobre Goiás e sobre a nacionalidade:

Uma ave branca ficará
chorando nos escombros

A segunda corrente adotou um simbolismo gó­tico para expressão do estranhamento de viver o espí­rito dos tempos sombrios da ditadura. Os estudos para instrumentação desta linguagem levaram algumas vo­zes do período a confundir onde fica(va) o limiar entre a vida e a obra. Valdivino Braz, Edival Lourenço e Delermando Vieira são os ápices desse segmento, que acabou tendo reflexos em poetas que seguiam por outras vias da poesia goia­na, tais como Pio Vargas e Tagore Biram. Em 2004, no poema “Evasão” — que pode ser o termo a ser escolhi­do para designar o sentimento que ficou do período — bem memorialístico do poeta gótico-pós-vaguardista, com desdobramentos internos, Edival Lourenço, após questionar ”o projeto (que) não se fez obra” e ”os pensamentos sob censura”, faz prédica da poética do futuro, pois foram assumindo líricas bem pessoais, insertas numa violência visionária, de busca de novas identidades para a linguagem e também para o homem exilado dentro do desconforto de existir no espaço e no tempo:


Só quero um dia obter a senha
Ter nas mãos a abracadabra
A aba que abrace a dobra
Ou a obra que abra as abas
E tirar de lá meu rascunho
Que jamais logrou escolha
Meus sonhos imanifestos
Meu destino sem outorga
Nem código de barra impresso
E aí noutro tempo e lugar
Me reconstruir em novas bases
Com aquela perdida face
Que lá também deve estar.

Por isso, a poesia goiana desse período deve ser lida e analisada com conhecimento da estranheza his­tórica vivida em Goiás com muito maior intensidade do que nas demais regiões do País. Era a ditadura, a guerrilha do Araguaia, o AI-1, o AI-2, o AI-3, o AI-4, o AI-5, o pau de arara. Um poema como esse de Edival Lourenço, para aquele que desconhecer o furor políti­co-social da época, não vai entrar no clima, talvez só vá julgar que o texto é expressão de uma lírica de desilu­são.
É claro que, num convívio com estas duas cor­rentes, surgiam poetas mais que transpareciam as estranhezas góticas e as e reflexos de outras corren­tes em andamento no País, com influências dos poetas de recorte da publicidade e da contenção leminskiana. No entanto, entre 1980 e 2000, foram raros os poetas que se acrescentaram às correntes da poesia goiana, sobressaindo Maria Abadia Silva e Marcos Caiado, e, separadamente, Pio Vargas e Tagore Biram — estes dois últimos se consumiram em alcoolismos estranhos, sem tempo para conclusão de suas obras.
Agora, é obrigação registrar que essas gerações tiveram de conviver com o desalento e o rancor de es­tar à margem do processo editorial e, em consequên­cia, do abandono da avaliação crítica. Ficavam, assim, obstruídos no caminho para o mercado editorial e sem a orientação para ajustes das poéticas pessoais, que só a crítica justa incita e estimula. Sob estas condições, tornava-se impossível a poesia produzir presença em territorialidades fora das fronteiras de Goiás, por mais que tenham sido criados concursos literários e bolsas de publicações sob os auspícios do Estado.
Com a ampliação da oferta de cursos de Le­tras, de Línguas, de Filosofia, e entrada de professo­res íntimos da literatura para suporte do ensino, foram sendo ampliadas as condições para surgimento de poetas capazes de absorver e expressar matizes e matrizes das vanguardas brasileiras. Depois de Pio Vargas, Edmar Guimarães e Wesley Godoi Peres entrarem com experimentos capazes de quebrar a for­ma de a tradição da poesia goiana lidar com a imagéti­ca da natureza, abolindo-a em nome da suspensão do real, emerge a geração voltada para a web, que desen­volve novas e desconstrói velhas linguagens, às vezes abolição do verso, às vezes a desconexão vocabular, ou a construção coletiva, ou o visual, ou a desconstrução frasal, ou o poema em prosa, o poema tuíte, ou o so­neto. Agrupados em comunidades virtuais, ensaiam novos formatos de lidar com a composição e com a circulação das obras. Alguns sequer publicaram livros físicos, pois acessíveis só em e-books, e, no entanto, já reconhecidos pela revista Poesia sempre, da Biblioteca Nacional.
                Há que se reconhecer a introdução de um poeta pernambucano, que vai se enraizando goiano, para insuflar adrenalina nos aspectos da poesia que se produz atualmente em Goiás. Jamesson Buarque tanto no meio acadêmico quanto no ombro a ombro com a juventude, e com a produção de uma poesia que certamente irá ser destaque na nacionalidade, insufla na camada mais jovem da poesia goiana o sentido da tradição e o esforço para que a palavra extrapole a capilaridade do real. 
Ainda é um mundo nebuloso, a web. Mas na névoa se esconde o inominável, o viajante, o poema perdido. Quando soube da escolha de poema de sua autoria para ilustrar este parágrafo, Marra Signorelli, com a jovem memória dos vinte anos, surpreendeu-se que o poema existisse que que fosse de sua autoria. Assim, Marra Signorelli, onde o muro da ditadura ainda está dentro, ou a impaciência do espaço incisivo da urbe, ou erro, ou a inconsciência, ou a eterna resistência da poesia:

Que aqui se faz a voz
Voz outra voz outrora atroz
Ou seria de dizer Vox
Nem Fox News ou CNN
Veloz
Como instinto de sílaba e sangue
De silêncio entremeando-me o si
De alguma peça ou de algum murmuro
Ou mesmo de algum carro que range
Porta ou fechadura corpo adentro.

O se.

Conforme previsto pelo artigo publicado em O Jornal do Rio de Janeiro, na edição de 11 de agosto de 1944, Goiás, com o Batismo de Goiânia, passou a ser o “centro de irradia­ção de novas bandeiras”. Goiás, portanto, não é só a bandeira que sina­liza e apressa a corrida para a construção de Brasília. Não é só a bandeira que abriu e apontou caminhos para a urbanização de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Tocantins, trazendo novos movimentos para o eixo do desenvolvimento econômico e cultural. Passada a eu­foria da corrida para essas frentes, a irradiação merece ocorrer de dentro para fora com celeridade, não só com liberação de estoque econômico, mas de bens culturais construídos por vozes erigidas na região.
Tudo isso balizado, a poesia desse território virgem e espoliado de sua riqueza deve ser tomada como gesto nascente, de vigor natural. E tudo que é jovem natu­ralmente vigoroso e autêntico  merece ser convocado para somar energia à nacionalidade.